Vivemos uma época de grande e rápida expansão tecnológica, nossos filhos nascem conectados e hábeis no manuseio de diferentes tecnologias. Mesmo adultos que não cresceram com tantas ferramentas à disposição, estão imersos no seu uso, todos distantes de hábitos e experiências nas quais nossos corpos e a maneira como aprendemos evoluíram. Tais distanciamentos, além dos já claros e bem documentados prejuízos para a saúde física e mental, diminuem a compreensão de nossas necessidades de preservação dos recursos naturais, nos dificultam aprendizagens e percepções mais amplas do nosso próprio ser e entorno e nos desvalidam para interações sociais mais humanizadas, assertivas e empáticas, afinal, é o corpo e suas emoções que nos colocam no lugar do outro.

Exemplos são os vícios que desenvolvemos pelos games digitais, mídias e tecnologias, a diminuição das experiências corpóreas fundamentais para aprendizagens, incluindo aquelas em ambientes naturais, com água, plantas, animais, o isolamento social e cultural, e toda gama de crenças e autoenganos que nossas bolhas digitais promovem.

A brincadeira será caracterizada em primeiro instante pela alternância de papéis, ou seja, a inversão de quem é dominador e quem é o dominado (Eibl-Eibesfeldt, 1979).Burghardt (2005) resume as características do comportamento de brincadeira a partir dos “big five” da brincadeira, ou seja, as cinco grandes características definidoras do comportamento: 1. Os comportamentos ocorrem fora dos contextos originais (brincar de escolinha ocorre em outros ambientes que nem sempre a escola); 2. A brincadeira é motivacional em si mesma, ou seja, ocorre de forma espontânea, reforçadora, voluntária e prazerosa; 3. Comportamentos incompletos, exagerados e com padrões com forma, sequência ou alvos modificados. Nas brincadeiras as crianças costumam exagerar nas falas, nos movimentos, como que para dar ênfase às suas ações imitadoras, sem que de fato aqueles comportamentos se concretizem como nos contextos da adultescência; 4. Movimentos repetitivos, bruscos e exagerados; 5. Seus ambientes são livres de tensões, relaxados, sem ameaças e disputas, e o indivíduo se encontra em estado saudável, alimentado e sem necessidades físicas ou psíquicas.

As brincadeiras livres e/ou planejadas, jogos de regras e de tabuleiro devem ser propiciadas, oferecidas e estimuladas pelos adultos, oportunizando as mesmas com outras crianças ou participando ativamente como parceiros nas atividades. De preferência brincadeiras ao ar livre, ou com objetos simples, de fabricação artesanal ou não, mas pouco automatizados, para aguçar a criatividade, a inventividade e atividades motoras amplas, onde até mesmo o fabricar tais objetos, jogos e brinquedos se torne um momento de lazer e interação, de solução de problemas e do exercício do reuso de materiais.
Isso não significa excluir games, mídias e tecnologias da vida das crianças, não se desejaria analfabetos digitais ou distantes das revoluções contemporâneas, o que também seria trágico, mas sim, dosar corretamente o tempo e a intensidade das diferentes atividades e resgatar o brincar com simplicidade e, preferencialmente, aquele que acarreta um envolvimento corpóreo maior.

Os momentos de brincadeiras livres, não direcionadas por um adulto ou educador, são também de especial importância, pois as crianças buscam estímulos que lhes são necessários e que, muitas vezes, o direcionamento não contempla esses momentos e necessidades.

A brincadeira, por não ter um componente diretivo, ou seja, por não ter uma especificidade, parece ser fator de multiplicação das sinapses em praticamente todas as áreas do cérebro, o que é fundamental para o preparo cognitivo e emocional dos indivíduos, para a formação de seres autônomos, independentes e livres para suas escolhas futuras – profissões, habilidades, preceitos morais e éticos, escolhas estéticas (Sartorio, 2016).

Ao caracterizar o brincar, familiares, pais, mães, professoras e professores estarão mais espertos para diferenciar uma brincadeira (de lutinha, pega-pega, polícia e ladrão, papai e mamãe) de contextos de agressão, como o bullying, ou de outros tipos de violência escolar, assim como, de contextos que explicitem uma erotização precoce. A inversão de papéis é um componente fundamental para diferenciar a brincadeira do bullying. Se durante repetidas interações um dos sujeitos sempre se encontra em papel de submissão não é brincadeira, é bullying.

É importante alertar para o fato de que, quando os indivíduos apresentam algum tipo de insegurança, ou o ambiente é hostil, ou quando as crianças estão mal alimentadas ou mesmo desprotegidas do ponto de vista psíquico ou moral, não há condições para que a brincadeira se realize. Devemos estar atentos, identificando possíveis vítimas de abuso, negligência e maus tratos e, podendo também diferenciar a brincadeira dos eventos de bullying, assim com, se a criança deixa de brincar, ou manifesta indisposição para esse comportamento, avaliando qual componente de insegurança está gerando tal ausência.

Não temos como certo a função da brincadeira, pois ela não apresenta componentes que possam identificar seu papel adaptativo imediato, não tendo fim em si mesma e não fornecendo novas respostas de forma imediata. Isso significa dizer que a criança brinca simplesmente pelo prazer de brincar. Descrevemos a estrutura do comportamento de brincadeira e sua validade na diferenciação e identificação dos eventos de agressão. O comportamento de brincadeira não apresenta uma função biológica prontamente identificável, como por exemplo, brincar de comer que tem todos os componentes do ato de comer, exceto pelo fato de não haver ingestão de alimento. Pode ter função de adaptação nos indivíduos imaturos, pode ser um preparativo para adquirir habilidades motoras e sociais que serão importantes nos seus contextos originais na fase adulta (Vieira e Sartorio, 2002). Pode ser um importante exercício que proporciona, nas crianças, um senso de domínio motor e dos impulsos, autoeficácia (percebendo que é capaz de resolver problemas por conta própria), possibilitando novas atividades, ou ainda, preparando-as para o inesperado, com eventos súbitos, como quedas e desequilíbrios, e para lidar emocionalmente com situações de estresse (Bichara et. al.,2009).

Os jogos e brincadeiras oferecem aqueles momentos de aprendizagem de limites e regras, sem a necessidade da punição (https://rodrigosartorio.com.br/por-que-e-como-desenvolver-regras-e-limites-na-infancia/). As atividades lúdicas livres e orientadas proporcionam experiências corpóreas diversas, possibilitam organizações do corpo e do cérebro que facilitam aprendizagens e a exuberância sináptica próprias da infância, melhoram a memória de trabalho, memória visual e espacial e o conhecimento de si. Além disso, as interações sociais das brincadeiras e dos jogos de regras modulam as emoções e as tomadas de decisões, fortalecem as relações entre familiares e suas crianças. O brincar com os filhos deve ocorrer em todos os momentos possíveis, representando uma oportunidade de amadurecimento e de estreitamento de laços para todos da família.

Em adultos, brincadeiras e jogos são ferramentas poderosas para diminuir os efeitos do estresse, para exercitar a resolução de problemas, afastados das dificuldades do dia a dia, facilitando outro fluxo de respostas. Enfim, seres humanos são incríveis no que tange à aprendizagem, é uma das poucas espécies que se dedica ao brincar ao longo de toda a vida, tudo sugere que estas correlações não são frutos do acaso, mas sim, necessidades físicas e cognitivas.

Referências Bibliográficas:
BICHARA, I. D.; LORDELO, E. da R.; CARVALHO, A. M. A.; OTTA, E. Brincar ou brincar: eis a questão. A perspectiva evolucionista sobre a brincadeira. In: YAMAMOTO, M. E. (org.). Fundamentos de Psicologia: Psicologia Evolucionista. 1.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S/A, 2009. v.único, p.104-113.
BICHARA, I. D.; LORDELO, E. da R.; MAGALHÃES, C. M. C. Por que brincar? Brincar para quê? A perspectiva evolucionista sobre a brincadeira. In: YAMAMOTO, M. E.; JAROSLAVA, V.V. (orgs.) Manual de Psicologia Evolucionista. Natal: EDUFRN, 2018. p.448-463.
BURGHARDT, G. M. The Genesis of animal play: Testing the limits. Cambridge: The MIT Press, 2005.
EIBL-EIBESFELDT, I. Etología: Introducción al estúdio comparado del comportamiento. Barcelona: Ediciones Omega, 1979.
SARTORIO, R. Compreendendo e Aplicando as Neurociências na Educação. São José: Alvart Editorial, 2016.
VIEIRA, M. L.; SARTORIO, R. Análise motivacional, causal e funcional da brincadeira em duas espécies de roedores. Estudos de Psicologia: Natal, 2002. v.7, p.189-196.