A memória consciente apresenta uma natureza construtiva, que pode conduzir a distorções e autoengano em nossas lembranças. As recordações não são reconstruções fidedignas dos fatos, reconstruímos as narrativas dos eventos para que façam sentido no agora e, as memórias são afetadas pelo conjunto de crenças preexistentes e mesmo por informações novas que são incorporadas. Editamos constantemente nossas memórias de fatos e dados, para que, o que vivemos anteriormente faça sentido, construindo uma lembrança que seja ajustada e coerente aos sistemas de crenças, valores e, enquanto justificativa para atos, muitas vezes, discordantes da nossa moral e ética (Sartorio e Callegaro, 2018).
   Essa reconstituição, permite também, a formação de “falsas memórias”, que envolvem possibilidades de lembrarmos eventos que nunca ocorreram e experiências das quais não participamos realmente. Ajustamos nossas recordações – lembrando seletivamente, esquecendo seletivamente ou adicionando elementos (Schacter, 2003).
  Em alguns experimentos, com metodologia simples, era solicitado aos participantes para ler estórias e depois recontar o que haviam lido (Loftus & Loftus, 1980; Gazzaniga, 1998). Ao recontar os textos lidos, eles eram mais curtos e coerentes, reordenando, reconstruindo e condensando os originais. Quando confrontados mais tarde com as duas versões, a original e a distorcida, demonstravam mais convicção na sua versão, que havia sido editada de modo a fazer sentido. Não havia confabulação nem mentira, mas sim, autoengano – os sujeitos interpretaram a estória.
 Falsas memórias podem ser facilmente implantadas e, ocorrem em suspeitos pressionados por policiais em interrogatórios, após eventos traumáticos, onde muitas vezes nossas memórias conscientes sofrem uma espécie de disruptura, ou em pacientes submetidos a técnicas psicoterápicas que estimulam o uso da imaginação. Nossa memória construtiva absorve novas informações sensoriais, sugestões ou dados da imaginação, assimilando-as às memórias verdadeiras. O Filme francês “La Boite Noire”, ou “Caixa Preta: o esquecimento é uma necessidade vital”, título em português, oferece um exemplo de como, após um trauma, podemos não saber a origem, sequência e lógica dos acontecimentos. No filme, há uma fala de uma médica que diz que “existem três pessoas lutando para coexistir em nossa mente, aquilo que imaginamos ser, aquilo que realmente somos e o que gostaríamos de ser”.
   Ira Hyman e seus colegas utilizaram de uma metodologia na qual faziam perguntas sugestivas sobre eventos que, de acordo com familiares, comprovadamente não ocorreram, para produzir falsas memórias. Cerca de um terço dos participantes lembra-se dos acontecimentos falsos em entrevistas realizadas mais tarde, e metade dos sujeitos que implantaram falsas memórias pode citar detalhes específicos (não fornecidos pelos experimentadores) como o local e outras minúcias sobre o incidente, além de declarar que estas memórias eram bastante claras e que se sentiam seguros de que estavam lembrando incidentes reais (Hyman, Husband & Billings, 1995).
   A corroboração de um evento por outra pessoa é uma técnica eficaz de promover autoengano e implantes de memória (Gazzaniga, 1995; Gazzaniga, 1985; LeDoux, Wilson & Gazzaniga, 1977). Se outras pessoas alegam ter visto alguém agir de certo modo, isso pode levar algumas pessoas altamente sugestionáveis a admitir o fato que nunca ocorreu.
   Na teoria da “redução da dissonância cognitiva”, Festinger (1964) demonstrou que as pessoas inventam uma justificativa ou uma nova opinião para resolver uma contradição em suas mentes – tendemos a reduzir a dissonância entre duas cognições conflitantes, fazendo da dissonância cognitiva um estado motivador (Festinger, 1964). Quanto maior a dissonância, maior a pressão para reduzi-la, o que pode gerar distorções (Wood, 2000). A redução da dissonância pressiona para diminuir as contradições entre cognições díspares, em uma procura de coerência, mesmo que, incorrendo em autoengano e adulteração dos fatos.
   Uma explicação neurobiológica para isso advém das especializações dos hemisférios cerebrais. O cérebro esquerdo busca consistência e estabilidade, reconstruindo memórias e tecendo narrativas fictícias (Gazzaniga, 1998; Ramachandran, 1996) para encaixar a realidade no modelo internalizado do mundo e do self, lançando mão de distorções quando confrontado com nova informação que não se encaixa, em um esforço para reduzir a dissonância entre “como as coisas deveriam acontecer” (o modelo) e “como meus sentidos me informam que as coisas estão realmente acontecendo” (a percepção da realidade). O cérebro direito contrabalança essa tendência, sugerindo revisão do modelo quando detecta anomalias demais – muita dissonância leva o hemisfério direito a obrigar o esquerdo a uma revisão do modelo (Ramachandran & Blakeslee, 2002). Há um contínuo embate, uma disputa dialética entre os dois hemisférios que, sem isso, jogaríamos fora a realidade, nos ancorando em teorias delirantes (Ramachandran, 1996). Tais eventos são comuns em surtos psicóticos, após eventos traumáticos ou, em decorrência de lesões no encéfalo.
   O mecanismo descrito como “Intérprete” por Gazzaniga pode estar na origem dos fenômenos de distorções de autoengano – segundo o neurocientista, no esforço para tentar criar ordem e impor coerência em nosso mundo psicológico, o intérprete do hemisfério esquerdo pode criar distorções utilizando o conhecimento geral e as experiências passadas como matéria prima.
   Existem inúmeras formas de autoengano que cometemos em nossa vida mental, as “Ilusões Positivas” são formas comuns e cotidianas de autoenganos, tendência bem documentada pela psicóloga Shelley Taylor (Taylor, 1989) em seu livro Positive Illusions. Mesmo com todas as vantagens adaptativas que as ilusões positivas possam ter para o indivíduo que as usa, as pessoas podem ter desvantagens se não souberem usar habilmente o processo. A percepção consciente que temos sobre nossas intenções e desejos é distorcida por dispositivos de autoengano. Geralmente, apresentamos uma visão positiva de nós mesmos, superestimando nossas habilidades e talentos e nossa capacidade de atingir metas (Taylor, 1989), são as denominadas pelo psicólogo Daniel Schachter (2003) de “distorções egocêntricas”, que constituem um conjunto de manobras que cercam a percepção do self de uma aura positiva, pintando um quadro exageradamente benevolente e digno de nós mesmos (Schachter, 2003; Lopez e Fuxjager, 2012). As pessoas tendem a notar mais frequentemente traços positivos de personalidade em si mesmas (Lopez e Fuxjager, 2012), enquanto destacam os traços indesejáveis dos outros. A visão que temos de nós mesmos é repleta de autoengano e tendemos a nos perceber como mais altruístas e colaboradores do que realmente somos.


   A defesa visceral de crenças políticas ou religiosas, aspectos do fanatismo religioso, do ultranacionalismo, podem ser vistos enquanto autoengano em nível coletivo, muitas vezes, a defesa de certas crenças, sem considerar os fatos reais e históricos que as suportam, poderia apresentar vantagens adaptativas para os indivíduos e grupos, aumentando a confiança, fortificando os laços, manipulando rivais (Atran e Henrich, 2015).
   Fenômenos culturais, incluindo racismo (Kurzban, 2001), preconceitos e tabus parecem se adequar bem ao conceito de “fenótipo estendido” de Richard Dawkins (1982), que envolve, também, a habilidade em manipular um outro organismo, que passa a ser uma extensão do fenótipo de genes egoístas do manipulador. Na ideia do fenótipo estendido, os genes humanos podem ter sido selecionados para codificar programas psicológicos, usando de informações culturais no intuito de enganar outros seres humanos ou grupos.

   Instituições religiosas, políticas, financeiras e mercadológicas, são particularmente utilizadas como ferramentas de manipulação de uns indivíduos sobre os outros, onde o benefício de se filiar a um grupo é retribuído com o custo, para o indivíduo, de auxiliar os membros daquele agrupamento, ou o sistemas de crenças, normas e condutas que caracterizam o grupo.
   Tais instituições fazem esforços para evitar e invalidar informações que contrariam ou enfraqueçam suas crenças e dogmas, muitas vezes, com distorções grotescas e criação de notícias falsas. Por isso também, a limitação ao público, do acesso a mídias e dados em regimes totalitários. Seguidores religiosos evitam ser expostos a qualquer tipo de revisão crítica de suas ideias, ou de fontes de doutrinas concorrentes. Fanáticos religiosos e políticos, mercados e mídias vorazes, descartam qualquer ideia contrária aos seus dogmas e racionalizam, usando as ferramentas fornecidas pelo próprio arsenal de crenças de sua religião ou preferências, geralmente bem sistematizadas em livros sagrados, propagandas, uso de dados do consumidor via web. Da mesma forma, patriotas de uma nação desmerecem as informações das nações rivais como sendo meramente propaganda ideológica (Trivers, 2011; von Hippel & Trivers, 2011).
   Como exemplos de autoengano coletivo, podemos citar o fenômeno do autoengrandecimento observado em situações de fanatismo religioso e também no nacionalismo extremado. O autoengrandecimento, que envolve um aumento dos vieses positivos a favor do próprio grupo, funciona como ilusão positiva em escala grupal. Outro exemplo de autoengano coletivo verificado com o fanatismo religioso e nacionalismo é a tendência de depreciar o sistema de crenças do grupo rival (von Hippel & Trivers, 2011).
O suicídio terrorista e a luta desenfreada para o consumo de produtos nocivos à saúde ou ao padrão exigido pelo grupo (um suicídio diário e sistêmico), emergem de ideias simplistas e autoenganos megalomaníacos. É fácil designar um poder maior (Deus, um Salvador ou, uma celebridade, como responsável pelos acontecimentos e como justificativa para um dado comportamento; há uma crença de benefícios indiretos advindos de um sacrifício para seu grupo religioso, raça ou classe social, ou ainda benefícios pós-morte para o suicida, uma crença de que o ato lhe engrandeceria frente ao inimigo e, o autoengano o mecanismo que justifica a ação (Fink & Trivers, 2014).
   A mentira e o autoengano são poderosos instrumentos de manipulação e persuasão. Sistemas psicológicos especializados evoluíram de modo a exercer, silenciosamente, domínio sobre nossa percepção, memória, emoção e comportamento, tecendo uma narrativa autobiográfica entremeada de autoengano, e assim, acobertando dos outros, e de nós mesmos, nossos interesses socialmente condenáveis (Trivers, 2011).
  Percebemos, portanto, devastadores efeitos do autoengano nos indivíduos e nas sociedades que, muitas vezes, estão alicerçados em sistemas de crenças contrários as necessidades e sobrevivências das pessoas e dos agrupamentos que fazem parte, como guerras entre nações pobres, a partir de políticas e financiamento de nações ricas com interesses de dominação, ou ainda, a luta entre classes sociais, os conflitos familiares, a xenofobia, com empobrecimento de uma população, família ou grupo social. A compreensão dos mecanismos da mentira e do autoengano pode nos auxiliar na tomada de decisões no plano pessoal e social. Nossa autocrítica constante e uma melhor percepção da realidade, bem como, o uso de estratégias conscientes podem cercear a influência negativa desses mecanismos.

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