Ler e escrever são aprendizagens intimamente relacionadas. Ambas as habilidades são adquiridas por etapas em um complexo e longo processo. A neurociência relacionada ao tópico tem apresentado diferentes e controversos resultados, demonstrando que há uma maior sofisticação do que se acreditava inicialmente (Hruby, Goswami, 2011). Isso é particularmente relevante, tendo em vista os atrasos na aquisição dessas habilidades durante a escolarização e o impacto que as tecnologias podem ter, positiva e negativamente, nesse quesito. Além dos componentes motores e sensoriais básicos, que discutiremos em outro momento, os aspectos cognitivos serão centrais aqui.
   O presente texto pretende discutir brevemente sobre a importância que a aprendizagem precoce das habilidades de leitura e escrita têm sobre o desenvolvimento cognitivo, social e emocional e as vantagens em não se abandonar a prática da escrita à mão, tanto durante a alfabetização e letramento, quanto ao longo da vida.
   Uma reflexão inicial é acerca da importância da leitura e da escrita na estimulação cognitiva. Quando nossa mente decodifica símbolos e os transforma em imagens mentais, uma miríade de áreas cerebrais são estimuladas e há um aumento na complexidade de ativação das mesmas.
   A aprendizagem da decodificação de símbolos em imagens mentais proporciona experiência e estimulação avassaladoras: sons, imagens, detalhes, odores, percepções, emoções e sentimentos que nossa mente precisa recriar ao explorar um texto, de preferência, um texto sem iluminuras. Assim também, uma mente precisa de muita força para colocar suas imagens mentais em códigos textuais, como na genial estética de escritores como Machado de Assis, James Joice, Marguerite Yourcenar, na riqueza de detalhes de suas escritas, ou o realismo mágico que recria um mundo inteiro de imagens mentais e histórias, sentimentos, por intermédio da escrita, em um autor como Gabriel Garcia Marques. Quão privilegiados constituem os cérebros daqueles que se dedicam ao ato de transformar em símbolos suas imagens mentais!
   Por isso, ler e escrever são as tarefas mais importantes na estimulação cognitiva, como sugerem Fernandes e Goldberg (2013) e, devem constar enquanto fundamento de todo o projeto curricular. Mas, que tipo de leitura e de escrita constituem esse fundamento? Com o advento de computadores, smartphones, tablets e tantos recursos de imagem e da escrita facilitada das teclas e telas, como oferecer currículos motivadores e também estimulantes para o texto manuscrito? Sabemos o quanto as imagens prontas, dos vídeos e fotos, são sedutoras e cômodas, com menos dissonâncias, contradições e esforço que a leitura e a escrita impõem. Nada contra o universo da imagem e do som, muito pelo contrário, histórias ilustradas são fatores de motivação inicial para o ato da leitura, nada que desmereça a iluminura ou um filme bem feito, pleno de detalhes na imagem e no roteiro, apenas uma defesa do combalido, mas irrecusável texto escrito, o que lembra o título da autobiografia de Moacyr Scliar “O texto, ou: a Vida”, na qual o autor faz uma análise da sua necessidade de escrever, sua vida expressa e vivida no texto.

Mapas conceituais escritos à mão melhoram a atenção e memorização dos conteúdos.

   A leitura ou a escrita produzem um conjunto de interações harmônicas, mas também, dissonantes, fazem parte de aspectos fundamentais de nossas vidas cognitivas, que são as contradições entre nossas necessidades de padrões, constância e previsibilidade e nossas também necessárias flexibilidade e abertura para o novo (Armstrong, 2020). Para o cérebro, leitura e escrita parecem desafios e ao mesmo tempo, incongruências.

Escrever à mão promove atenção nos detalhes das letras e palavras, treina habilidades de categorização, além de criar um vínculo e identificação com a atividade. Fonte: Alunos Mentalize treinando a letra cursiva.

   Estudos na interface entre neurociência e educação têm buscado respostas para a oposição entre a aprendizagem da escrita à mão e a escrita digitalizada (Beninger, 2012, James e Engelhardt, 2012; MacMahan e Charness, 2014; Mangen et. al., 2015; Mangen, e Balsvik, 2016), e sugerem que estimular a aprendizagem da escrita à mão, cursiva preferencialmente (Semeraro et. al., 2019), ao longo da infância, proporciona ao cérebro treinar especializações funcionais que vão desde as funções executivas (planejamento e programação das ações) até a integração sensorial, controle dos movimentos, dos pensamentos e dos impulsos. Também, circuitos da leitura no cérebro se tornam mais ativos durante a escrita à mão, quando comparados com a digitalização (James e Engelhardt, 2012). Ou seja, o ato de escrever à mão nos torna melhores leitores.
   A despeito do uso de ambas as mãos e da rapidez em digitar um texto, a escrita cursiva proporciona maior atenção visual (MacMahan e Charness, 2014) e retenção de informações (quem nunca fez aquela cola manuscrita bem pequena e cuidadosa em um papel miúdo e não precisou usar na hora da prova, pois lembrava o que havia escrito?). Em um experimento (Mangen et. al., 2015) os pesquisadores demonstraram que há uma maior lembrança de palavras de uma lista quando as mesmas foram organizadas escrevendo à mão se comparadas escritas em um teclado de computador ou em um iPad. Parece haver uma contribuição significativa na ativação de diferentes e mais amplas áreas do cérebro na escrita à mão, aumentando o foco, atenção e sistemas de memórias.
   A escrita à mão cursiva permite que se localize cada traço das letras e palavras em relação a outros traços, a aprender e lembrar do tamanho, inclinação, forma global e detalhes de recursos característicos de cada letra, desenvolve habilidades de categorização, os movimentos e os componentes motores são mais exigentes, as letras são menos estereotipadas, cujo reconhecimento visual ‘e lembrança’ é mais provável engajar o aluno, provendo o mesmo de um senso personalizado e próprio, de ‘pertencimento’ (Klemm, 2013, grifo meu). Parece que a escrita com lápis e papel, quando bem treinada, é bastante motivadora para o cérebro que se permite o desafio, além de gerar uma espécie de vínculo e identidade.
   Assim, as atividades planejadas na escola ou no ensino domiciliar devem treinar desde a educação infantil, por meio de brincadeiras, jogos, experiências e interações, os conceitos informais, tais como, em cima, embaixo, do lado, dentro, fora, atrás, na frente, com o corpo todo ou com suas partes, com colegas e amigos, para facilitar as formalidades necessárias à alfabetização e letramento, como sequenciação, seriação, unidade, conjunto, correspondência, comparação, classificação, categorização, que serão aprimoradas cada vez mais ao longo da escolarização e da vida. Os aspectos motor e sensorial são imprescindíveis para o sucesso dessas aprendizagens. Parafraseando Wallon, o ato motor precede o ato mental, valendo a ideia, particularmente, para a leitura e escrita.
   Exemplos de treinos são construções de cabanas, muralhas, torres de castelos com lençóis, toalhas, cadeiras (senso topológico), e toda sorte de brincadeiras, fantasias e narrativas que propiciam essas “edificações”, muitos jogos de espelhar o comportamento do outro, ou mesmo, esperar numa fila ou a vez de jogar em uma posição pré-estipulada, material dourado e Tangram são ótimos aliados. Organizar os “combinados” em uma folha ou cartaz ajuda na fixação e no cumprimento dos mesmos. Ensinar a ler e a escrever é abrir um universo de experiências motoras, sensoriais, sociais, culturais, afetivas, é configurar a empatia nos neurônios espelhos.

A escrita à mão permite expressar mais ideias e sentimentos, maior ativação das áreas do cérebro relacionadas à memória de trabalho e à leitura, além de promover maior autocontrole. Fonte: Mentalize Educação, Diferentes formas de aprende, em um só lugar!

   Um estudo conduzido com crianças do 2°, 4° e 6° anos demonstrou que, quando utilizavam a escrita à mão as crianças escreviam mais palavras, mais rápido e expressavam mais ideias que quando digitavam (Beninger, 2012). O estudo também mostrou maior atividade de áreas associadas à memória de trabalho e maior ativação de redes neurais relacionadas à leitura, bem como, um maior treino de autocontrole com a escrita à mão, quando comparado com a escrita digitalizada em um teclado. Vale lembrar que o autocontrole propiciado pela escrita à mão é um treino que poderá ser extrapolado para outras esferas da vida, como relacionamentos, resoluções de conflitos, controle do estresse e das emoções. Parece ser um ótimo recurso para auxiliar na qualidade de vida e inclusão de alunos e pacientes com transtornos e síndromes, necessidades especiais ou alterações no desenvolvimento, em particular, para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Transtornos do Espectro Autista (TEA), dislexia, alexia.
   Talvez, nas novas gerações e seus diferentes hábitos de escrita e leitura, possa ocorrer uma maior adequação ao uso de recursos como telas sensíveis ao toque ou teclados para a escrita e que as diferenças aqui discutidas não sejam mais significativas, no entanto, não podemos desmerecer os milênios de existência da letra escrita à mão, marcada indelevelmente em nossa evolução cultural e social, e que possibilitou, presenciou e registrou grandes conquistas da Humanidade. Tudo indica que seu ensino e treino desde tenra idade potencializa nossas habilidades motoras, cognitivas, sociais e emocionais e que deve ser estimulada para melhores resultados educacionais e acadêmicos.

Referências:
ARMSTRONG, P.B. (2020). Stories and the Brain: The Neuroscience of Narrative. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2020. 272 pp.
BERNINGER, V. Evidence-Based, Developmentally Appropriate Writing Skills K–5: Teaching the Orthographic Loop of Working Memory to Write Letters So Developing Writers Can Spell Words and Express Ideas. Presented at Handwriting in the 21st Century?: An Educational Summit, Washington, D.C., January 23, 2012. Disponível em: https://www.hw21summit.com/research-berninger. Acesso em: ago.2020.
FERNANDEZ, A., GOLDBERG, E., MICHELON, P. The Sharp Brains Guide to Brain Fitness: How to Optimize Brain Health and Performance at Any Age. Washington, DC: SharpBrains, 2013. Disponível em: https://sharpbrains.com/book/. Acesso em: jan.2015.
HRUBY, G.G., GOSWAMI, U. Neuroscience and Reading: A Review for Reading Education Researchers. Reading Research Quarterly, 46: 156-172, 2011. dx.doi.org/10.1598/RRQ.46.2.4.
JAMES, K.H., ENGELHARDT, L. The effects of handwriting experience on functional brain development in pre-literate children. Trends in Neuroscience and Education. 1 (2012) 32–42. https://doi.org/10.1016/j.tine.2012.08.001.
KLEMM, W. R. Why writing by hand could make you smarter. 2013. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/intl/blog/memory-medic/201303/why-writing-hand-could-make-you-smarter. Acesso em: ago.2020.
MACMAHAN, C., CHARNESS, N. Focus of attention and automaticity in handwriting. Human Movement Science. 34 (2014) 57–62. http://dx.doi.org/10.1016/j.humov.2013.12.005.
MANGEN, A., ANDA, L.G., OXBOROUGH, G.H., BRONNICK, K. Journal of Writing Research 7(2), 227-247, 2015. http://dx.doi.org/10.17239/jowr-2015.07.02.01.
MANGEN, A., BALSVIK, L. Pen or keyboard in beginning writing instruction? Some perspectives from embodied cognition. Trends in Neuroscience and Education, 2016. http://dx.doi.org/10.1016/j.tine.2016.06.003
MUELLER, P.A., OPPENHEIMER, D.M. The Pen Is Mightier Than the Keyboard: Advantages of Longhand Over Laptop Note Taking. Psychological Science 2014, Vol. 25(6) 1159 –1168. 2014. DOI: 10.1177/0956797614524581.
SEMERARO, C., COPPOLA, G., CASSIBBA, R., LUCANGELI, D. Teaching of cursive writing in the first year of primary school: Effect on reading and writing skills. PLoS ONE 14(2): e0209978, 2019. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0209978.