Em tempos de revoluções midiáticas, com o advento das mídias digitais e um mundo cada vez mais “conectado”, parece haver um esquecimento do lugar do corpo, essa entidade reduzida à ideia de máquina, uma peça de relojoaria, no que eu chamaria de “A maldição de Descartes”. Tal concepção dualista (Res cogita, a coisa pensante e, o Res extensa, a coisa material) está bem adaptada ao mundo do consumo individualista, mercantilizadas as coisas e as vidas. No entanto, pouco adaptada ao universo das Interações, daquilo que nos é relacional, das conexões amplas, corpo e mente. Também distantes de nossas necessidades ecológicas e do Religare promovido pela fé, pela ideia de continuidade da alma, agora quase sem corpo.
Vamos discutir um pouco o lugar do corpo, o corpo que se emociona, que ama, que aprende, que interage, o habitat da alma, espírito ou mente. A perspectiva é Monista, ou seja, corpo e mente constituem uma mesma entidade, se há separação, é em outro plano ainda não bem elucidado. Esse “corpomente” se expande para além do indivíduo, por meio de nossas características relacionais. Nossas relações com o entorno, com outros seres, outras pessoas nos definem e caracterizam tanto quanto nossas bordas corpóreas, personalidades, respostas emocionais, comportamentos.
Quando se pensa na mente, pensamos em cérebros, eventos metafísicos, linguagem simbólica. Esquecemos do lugar do corpo, pois, é no corpo que habita a mente, é uma coisa só. Percebemos o mundo a partir de receptores de luz (olhos), químicos (olfato, gustação), mecânicos (tato, ondas sonoras, propriocepção), em nossos cérebros decodificamos e oferecemos significados às informações. Produzimos respostas hormonais, imunes, motoras, cognitivas, para as mudanças do nosso entorno, Cognição = Percepção + Ação (VARELA, MATURANA, 1998).
Nosso segundo cérebro, o intestino, interage de forma marcante com microorganismos da flora intestinal e, com o sistema nervoso, influenciando nossas emoções, percepções, pensamentos, produzindo substâncias regulatórias e constituintes de estruturas neurais, neurotransmissores e mensageiros químicos fundamentais para os pensamentos, memórias, motivação, estresse e ativação da resposta imune. Então, além de sermos nossos corpos, interagimos com outros corpos que acabam nos constituindo de muitas maneiras.
Walt Whitman, o grande poeta e jornalista, que atuou como enfermeiro na Guerra de Secessão Americana, nos afirma claramente o lugar dos sentimentos: o corpo. Em Folhas de Relva, na versão de Martin Claret (2009), traduzida da nona e última edição em vida do autor, Whitman já assinala o que é real, o corpo: “Teu corpo permanente, o corpo oculto dentro de teu corpo, o único sentido da forma que és, o eu mesmo real. Uma imagem, um ídolo” p.21. O poeta já alinhava a ideia de que a mente, ou o cérebro, faz uma imagem do próprio corpo e suas relações. Whitman, enquanto enfermeiro na Guerra, viu muitos soldados sem braços, mãos, pernas, e presenciou o que hoje conhecemos como membros fantasmas, dor e outras sensações em áreas do corpo que já não existem, “Fantasmas no cérebro”, para usar do título homônimo do livro de Ramashandran e Blackslee (2004).
Aqui cabe um diálogo com António Damásio, na obra “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos”, onde o autor defende o monismo spinozano, a mente e o corpo como uma única entidade, no entanto, separa as funções, sugerindo que “as emoções ocorrem no teatro do corpo, enquanto os sentimentos no teatro da mente”. O cérebro atua, para Damásio, “como se fosse o corpo”, pois o cérebro cria ideias, projeções, mapas e representações do corpo e suas interatividades (DAMASIO, 2004).
Para Whitman, “Alguém está pedindo para ver a alma? Veja, sua própria forma e feições… Note, o corpo contém e é o sentido, a ideia central; Ele contém e é a alma” O poeta afirmava com frequência que “Sua própria carne será um excelente poema”. Em Folhas de Relva, Whitman elucida a natureza interativa da poesia, interativa no que tange a união de supostos contrários, do indivíduo e da coletividade, do corpo e da mente: “Sou o poeta do corpo, E sou o poeta da alma. Os prazeres do céu estão comigo, os pesares do inferno estão comigo, Aqueles, enxerto e faço crescer em mim mesmo…estes, traduzo numa nova língua.” (WHITMAN, 2009, p.87). É a força da resiliência traduzida na unidade do corpo e da alma.
Dois problemas iniciais se destacam no momento em que adentramos a vida virtual por meio de máquinas, dígitos: 1. O lugar do corpo e, 2. A tenacidade do corpo. A virtualidade é algo natural, já sabemos muito sobre a virtualidade presente em nossos cérebros, quando criamos imagens mentais, seja do próprio corpo, de outros corpos, de símbolos que se transformam em imagens mentais, por meio da escrita e leitura, da oralidade e musicalidade. As lembranças e memórias são virtualidades dos acontecimentos, editadas e recriadas por nossas mentes, essas lembranças remetem à lugares específicos, que nossos corpos ocuparam em um dado momento, seja na virtualidade criativa da mente ou de espaços físicos concretos, locais ativados por nossos GPSs neurais. A virtualidade do mundo dos dígitos, dos bits, é uma virtualidade ainda muito limitada no que tange aos espaços, às trocas, constitui um lugar com pouca mobilidade física a tela de um computador, smartphone ou tablet. Conectados em nossas casas, nossos corpos isolados de outros corpos, realizamos tarefas de trabalho e aprendizagem distantes de locais dedicados e interativos para essas atividades.
O mundo virtual dos dígitos e criptografias exige pouco dos corpos, ou muito, em sua animosidade. Há reduzido fluxo de informação interpessoal, a comunicação não verbal prejudicada. Sabemos que, na ausência do olhar mútuo e das mímicas que constituem nossas expressões corpóreas, estamos limitados quanto à empatia, cooperação e sincronicidade e, as atividades colaborativas se tornam sôfregas, em parcela significativa das mesmas. A liderança, a responsabilidade e responsividade estão prejudicadas, assim como, a criatividade.
Mas quem sofre mesmo é o corpo, que necessita desses alimentos sensoriais, de percepção, para agir, se fortalecer e, tendo sua ação reduzida, o cérebro pena, seja por menor conectividade entre suas partes ou, por menor conectividade com uma importante parte daquilo que também nos constitui, os outros, o entorno, um espaço e tempo determinados. Podemos considerar ainda o empobrecimento de significados para nossas emoções e sentimentos, esses estados dos nossos corpos e mentes em determinadas situações e momentos, agora desprovidos de um lugar, por vezes, de outros corpos de afeto e carinho, proteção e segurança, sincronicidade de ações motoras e cognitivas, o espaço do amor, que ocorre como uma alegria acompanhada da ideia de uma causa externa a si mesma, como sugere Espinosa, Livro Ética, Parte III, A origem e natureza dos afetos.
Para além de nossos corpos, interagimos e somos constituídos pelas nossas relações e a aprendizagem se torna facilitada quanto mais envolvemos nossos corpos e quanto mais trocas forem possíveis na atividade a ser aprendida. Isso é óbvio para aprendizagens de atividades manuais, por exemplo, usar o corpo para aprender exige muito de nossos cérebros, aprender atividades manuais são estímulos potentes para prevenir o declínio cognitivo, assim como, para potencializar conexões neurais ao longo do desenvolvimento. Não à toa que muitas tradições, como a judaica, valorizam a aprendizagem de uma profissão manual desde a infância, José e Jesus eram carpinteiros, Spinoza, polidor de lentes. Ambientes dedicados e colaborativos maximizam aprendizagens, quanto maior a interatividade, maior a potência para a aprendizagem. É a Natureza Interativa da Cognição Humana (BHATTACHARYA, 2017).
A Neurociência, a Psicologia Evolucionista, as Ciências Cognitivas e as Ciências do Movimento nos apresentam alternativas no modo de pensar o corpo, alinhadas com a Filosofia de Spinoza e a poética de Whitman. Os conhecimentos que temos sobre o corpo, suas percepções, respostas e automatismos motores, sistemas de memórias, neuroplasticidade, serão úteis para a educação especial, para o ensino regular, em todos os níveis, em ambientes físicos dedicados ou virtuais, para o ensino tecnológico. Uma técnica nova de alfabetização para o autismo pode também valer para uma criança com alguma dificuldade no processo em decorrência de outras origens, inclusive, nutricionais e de hábitos. O ensino à distância e ambientes colaborativos remotos apontaram muitos fatores para a aprendizagem que podem ser maximizados em ambientes e circunstâncias presenciais. Uma atividade organizando uma ação em um treino físico pode modificar a percepção em uma aprendizagem intelectual e melhorar a memória de trabalho e processual, nas escolas, no trabalho ou, em casa. Regras treinadas em um jogo de tabuleiro podem automatizar as regras combinadas no lar ou na escola. Um jogo de estratégias em um tabuleiro (Cilada, Hora do Rush) ou em um gráfico no caderno (Batalha Naval) são ótimos treinamentos para aprender lógica, linguagem digital, o conceito de bit, fundamental em informática e robótica.
A aprendizagem ocorre em contextos de interação, a Zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky. É fundamental buscarmos estratégias que consolidem o lugar do corpo, na mesma medida que a virtualidade ocupar nossos espaços de interatividade.

Bibliografia:
BHATTACHARYA, J. Cognitive Neuroscience: Synchronizing Brains in the Classroom, Current Biology, v.27 (9), 2017, pp.R346-R348. Disponível em:https://doi.org/10.1016/j.cub.2017.03.071.(https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0960982217304013). Acesso em: set.2021.
DAMÁSIO, A. R. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Companhia das Letras: São Paulo. 2004.
MATURANA, H. R., VARELA, F. J. A Árvore do Conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Palas Athena: São Paulo. 2005.
RAMACHANDRAN, V.S.; BLACKSLEE, S. Fantasmas no cérebro: uma investigação dos mistérios da mente humana. Record: Rio de Janeiro. 2004.
SPINOZA, B. Ética. Tradução e notas de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. Tradução de Gentil Saraiva Junior (Tese de Doutorado). Martin Claret: Madras, 2009. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4684565/mod_resource/content/1/FOLHAS%20DE%20RELVA%20EDI%C3%87%C3%83O%20MARTIN%20CLARET.pdf. Acesso em: 29.ou.2021.

Crédito das imagens:
Deux femmes courant sur la plage (La course) pintado por Picasso em 1922 quando ele retratou banhistas, praias e mulheres (Foto: RMN-Grand Palais (Musée national Picasso-Paris) / Berizzi Jean-Gilles).
Walt Whitman – foto: George C. Cox (1887)Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/walt-whitman-poemas/
A Dança. Henri Matisse. 1910. Óleo sobre Tela (260x391cm) – Museu Hermitage, São Petersburgo – Rússia.