Estudos realizados com o boto cinza (Sotalia guianenses) sugerem que estes animais vivem em grupos matrilineares, compostos de fêmeas com seus filhotes (infantis e juvenis), e grupos separados de machos que, frequentemente, se misturam aos grupos matrilineares. Nas baías protegidas de Pipa ou na laguna de Guaraíras em Tibau do Sul (RN), os filhotes e juvenis (adolescentes golfinhos) se relacionam de forma bastante lúdica, e suas mães podem sair mais seguras para a busca de alimento (forrageio). Os juvenis interagem muito com os filhotes, em brincadeiras como rolar, saltar, nados rápidos nas ondas. Muitas vezes, utilizando objetos nas interações como algas, peixes. E muito, muito contato físico; empurrões, batidas de caudas, rolar o corpo sobre o corpo do outro, subir em sincronia tipo periscópio (Sartorio e Yamamoto, 2005).
Interação lúdica do boto cinza na Baía dos Golfinhos, Praia da Pipa, Tibau do Sul, RN.
De alguma maneira, o fato de juvenis golfinhos estarem envolvidos nas interações tão intensamente com os filhotes deve promover vantagens adaptativas: para os juvenis significa uma maior sofisticação cognitiva, melhorando habilidades e competências necessárias para a vida adulta; para os filhotes, as vantagens de proteção contra predadores e treino de habilidades físicas, sociais e emocionais, fundamentais para a vida no mar e na vida em grupo. Para as mães, uma garantia a mais de que seus filhotes sobreviverão. Para o grupo, uma vantagem adicional para sua manutenção.
Vamos tratar aqui acerca da importância do treino de habilidades físicas, cognitivas, sociais e emocionais, em ambientes familiares e escolares, no desenvolvimento de determinadas áreas do cérebro que participam na tomada de decisões, na maturidade social e moral, bem como, no controle dos impulsos e comportamentos antissociais, aquilo que nos faz adultos e civilizados.
Existem muitos resultados controversos (Kristensen e Bjerkedal, 2017) no que se refere a diferenças em termos de aptidões sendo o primogênito, o irmão/irmã do meio e o indez. A despeito disso, os filhos mais velhos nas famílias, por ter de ajudar a cuidar dos irmãos mais novos, excepcionalmente na adolescência, apresentam chances de treino cognitivo e físico em tais tarefas que melhoram suas respostas no que tange a memória de trabalho ou procedual (sequências de tarefas e o procedimento para as mesmas), contar e estimar o tempo (para verificar uma fralda ou o tempo para a próxima mamadeira), automatismos cognitivos e motricidade fina (preparar alimentos e organizar brinquedos e roupas). Atividades que estimulam áreas do cérebro relacionadas, como o córtex frontal, o giro cingulado anterior e os núcleos basais. Por outro lado, o ambiente geralmente muito estimulante que os irmãos mais velhos proporcionam aos irmãos mais novos faz com que estes recebam precocemente estimulações advindas de um ambiente com irmãos, assim como, cuidados extras no ambiente familiar, quando são estimulados a protegerem uns aos outros.
Habilidades emocionais são treinadas, como a empatia (saber diferir no choro de um bebê a manha, a fome, sono ou dor), assim como compaixão (crianças sempre remetem a esta coisa que precisa ser cuidada, protegida, acolhida). Aprender a internalizar as alegrias dos outros, as tristezas dos outros. Também aqui áreas do córtex, como o giro da ínsula e o lobo frontal, se tornam mais sofisticadas e mais aptas nas suas tarefas de regerem a orquestra dos nossos cérebros socioemocionais (Goldberg, 2002).
Existem diferentes e variadas configurações familiares nos dias atuais no mundo ocidentalizado, e a presença do filho único se tornou fator importante, pois agora aquele irmão mais velho ou mais novo não está representado. Além disso, os pais que lutaram e continuam lutando muito para sobreviver e manter o padrão desejado, e sem tempo para interação com seus filhotes, agora estão desejosos de que os mesmos nada sofram, não experimentem nada fora do planejado e não deixem de TER aquilo que necessitem/desejem, sobrando pouco espaço de conquista e autonomia. A combinação destes dois fatores promove esta infantilização em demasia de todas as esferas das nossas vidas.
Muitas tarefas e oportunidades de partilha já podem estar presentes em mais tenra idade, assim como, a fase de aprendiz pode se estender um tanto mais na adolescência. Isso é importante de ser notado, posto que no passado houvesse uma negligência da infância, uma deformação adulta das crianças, enquanto nos dias atuais estamos vivendo uma infantilização da fase adulta.
O mesmo ocorre no que se refere aos afazeres da casa. Crianças maiores e adolescentes devem gradativamente ter um aumento nas responsabilidades. Este aumento terá impacto positivo e profundo sobre o exercício da autonomia, e da capacidade deste filho/filha se colocar no lugar dos pais e responsáveis. Nossos cérebros terão capacidades na mesma medida que estas forem treinadas e exigidas no dia a dia.
O contraponto do modelo superprotetor e autoritário e, paradoxalmente ausente, deve ser o ambiente escolar, um espaço para o exercício desta autonomia e exercícios cognitivos de maturação das áreas associativas e de controle dos nossos cérebros. Este espaço deve ser aberto e livre, autorregulado e emancipatório. E é; a escola ainda é um dos poucos espaços democráticos, de liberdade e de propósito. E pode e deve ser mais a partir de uma diversificada e forte formação docente.
Vamos falar agora sobre a comunidade escolar. O ambiente que abriga a comunidade escolar oferece muito deste nicho seguro onde crianças maiores e menores interagem e aprendem nas brincadeiras livres dos intervalos e de forma dirigida e sistematizada, nas diferentes propostas pedagógicas, enquanto pais e mães saem em busca do seu sustento. A escola é lugar no qual as crianças e adolescentes constroem as suas identidades e exercitam as habilidades e competências necessárias para um amplo desenvolvimento do corpo e da mente, é o contínuo do útero da família, em um contexto social mais abrangente. A escola constitui o lugar privilegiado onde há mediação segura do conhecimento, onde os educadores e educadoras treinam a autonomia no mundo do corpo, das letras, das ciências, das artes e filosofias. A escola é este lugar plural onde equipes de profissionais, com diferentes visões de mundo, ensinam o discernimento, a antecipação dos resultados dos atos, a responsabilidade e autonomia, o respeito, a melhoria na percepção de si e do que lhe parece diferente de si. É lugar que permite aprender com os colegas, lugar para compartilhar brinquedos e ideias, tarefas e compromissos.
Em muitas culturas, os limiares e pontos de transição no desenvolvimento e integração social vão paulatinamente migrando de uma fase para a outra (embrião, recém-nascido, infância, adolescência, adultescência), de um ambiente para o outro (do útero materno, para a família, comunidade escolar e religiosa, comunidade acadêmica, profissional, geográfica). Urie Bronfenbrenner (1996) nos seus estudos sobre ecologia do desenvolvimento humano traçou um método de análise de como se estabelecem estas integrações. Muitos dos nossos ritos de passagem estão imediatamente relacionados com estas alterações no desenvolvimento e/ou posição na teia social. Nascimentos e batizados na cultura cristã, bar mitzvah judaico, formaturas, ritos de coragem e determinação entre os meninos em povos amazônicos e africanos, os rituais de casamento, direito ao voto ou dirigir, penas mais severas para crimes.
Uma das últimas partes do cérebro a sofrer maturação é o córtex pré-frontal, em especial o órbitofrontal (região entre as orbitas dos olhos e toda área adjacente na testa), conforme sugere o estudo longitudinal utilizando imageamento por ressonância magnética (MRI) conduzido por Giedd e Rapoport (1999). O amadurecimento desta área significa a maturidade social e moral, assim como, lesões nos lobos frontais, como a síndrome orbitofrontal, podem levar o paciente a ser emocionalmente desinibido, a se envolver em pequenos furtos, direção imprudente, sexualmente mais agressivos e explícitos, egoístas, uma personalidade “imatura” (Goldberg, 2002). No entanto, não apenas em decorrência de lesões esta área pode alterar o controle sobre os atos e juízos; a não estimulação e desenvolvimento limitado dessa área ao longo da infância e adolescência podem acarretar em comportamentos e disfunções semelhantes aqueles provocados por lesões. Há uma hipótese de trabalho de que experiências estressantes precoces de vida podem lesionar ou não desenvolver plenamente o córtex frontal.
Outras áreas que exercem controle dos impulsos e emoções, como o córtex cingulado anterior e os núcleos basais (automatismos cognitivos e memória motora), também necessitam de treino e exercícios para se tornarem sofisticadas em suas respostas. Assim como na definição de músculos, os grupos de neurônios destas regiões necessitam ativação constantemente. A maturação das mesmas pode significar maior controle de muitos dos nossos impulsos agressivos, o que em uma sociedade com altos níveis de estresse, pode representar maiores ou menores níveis de tolerância e respeito. Aquilo que “torna possíveis o discurso civilizado e a resolução de conflitos” (Goldberg, 2002, p.177).
O sucesso, na presente abordagem, deriva do uso eficaz das habilidades físicas e cognitivas, sociais e emocionais para atingir nossos objetivos. Treinar estas habilidades de forma intensa, em todas as esferas das nossas vidas, em todos os momentos e de acordo com o desenvolvimento de cada um é o objetivo último a que se destinam nossos cuidados como pais e mães, como comunidade escolar, responsáveis pelo pleno desenvolvimento de nossas crianças e adolescentes.
Assim como no grupo de golfinhos, uma sociedade madura é uma sociedade que impõe em seus sistemas educacionais formais e informais, na família ou na escola, no trabalho ou lazer um leque de estimulações de forma precoce e intensa para que seus indivíduos se tornem cooperativos e civilizados. É uma sociedade que não infantiliza seus adultos e que promove responsabilidades aos seus jovens. É na família e na escola, oferecendo anos e anos de educação e instrução, fazendo uso do gigante corpo de saberes na atualidade como plataforma para o desenvolvimento do corpo e da mente que haveremos de enfrentar os grandes desafios para nossa sobrevivência. A ciência é uma grande aliada neste desafio, e as neurociências oferecem valiosos insights dos caminhos a seguir na formação de líderes capazes de assegurar o futuro.
Bibligrafia:
BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
FRIEDRICH, G. e PREISS, G. Educar com a cabeça. Viver: Mente e Cérebro, XIV(157), p.50-57, 2006.
GIEDD, J. N., BLUMENTHAL, J., JEFFRIES, N. O., CASTELLANOS, F. X., LIU H., ZIJDENBOS, A., PAUS T., EVANS A. C., RAPOPORT J. L. Brain development during childhood and adolescence: a longitudinal MRI study. Nature Neuroscience 2:861-863, 1999. DOI: 10.1038/13158.
GOLDBERG, E. O cérebro executivo: lobos frontais e a mente civilizada. Rio de Janeiro: Imago Ed. 2002.
KRISTENSEN, P. e BJERKEDAL, T. Explaining the Relation Between Birth Order and Intelligence. Science, 316 (5832), 2017. DOI: 10.1126/science.1141493.
SARTORIO, R. Compreendendo e aplicando as Neurociências na Educação. São José: Alvart Editorial, 2016. 151p. il. ISBN – 978-85-62308-46-8.
SARTORIO, R. e Yamamoto, M.E. Padrões de agrupamento, comportamento e uso da área de Sotalia guianensis (CETACEA, DELPHINIDAE) no litoral so do RN, Brasil. Tese de doutorado em Psicobiologia. Natal: UFRN, 2005.
SISK, Cheryl L. e FOSTER, Douglas L. The neural basis of puberty and adolescence. Nature Neuroscience. 7(10):1040-1047, 2004. DOI: 10.1038/nn1326.