Há uma crise moral no mundo todo: no âmbito global, com os mercados e os estados, vorazes por recursos naturais e com gestões e produtos para lá de duvidosos, em eficácia e qualidade. No âmbito pessoal, e todas as mazelas do dia a dia, do trabalho, dos problemas familiares, do trânsito, das inseguranças nas ruas, institucionais e jurídicas, ou mesmo, do consumo de itens caros e de péssima qualidade e, ainda, na insegurança do corpo, educacional e na saúde.

   A origem da crise moral é profunda e está alicerçada nas nossas ações cotidianas, nos exemplos e educação que oferecemos para nossas crianças, sejam filhos, alunos, ou cidadãos em formação com influências das mídias e do consumismo, é civilizatória.

   Piaget, no seu seminal livro “O juízo moral na criança” (1994), nos oferece um caminho de análise e solução para o problema. Durante a infância, vivemos uma fase de heteronomia moral, e nosso comportamento e desenvolvimento cognitivo, emocional e moral vai se direcionando e automatizando a partir dos exemplos que temos dos membros mais velhos do grupo, das nossas experiências e treinamentos com a justiça, igualdade, direitos e deveres. Nesta fase, parece haver uma prerrogativa de aceitar e internalizar as regras que o mundo adulto oferece, ou internalizar a ausência delas, sendo que o excesso de normas e, normas não cumpridas, podem gerar uma formação inadequada no que tange a nossa ideia da importância das mesmas.

   Uma vantagem adaptativa para os comportamentos de brincadeira e dos jogos estaria atrelada ao exercício de habilidades que poderiam ser muito mais custosas se treinadas posteriormente, a brincadeira de luta, por exemplo. Os jogos de regras constituem esse treino para o mundo das normas, qualquer jogo de regra é excelente. Com o avanço de maturidade da criança, os jogos devem aumentar em complexidade, bem como, em flexibilidade na criação de novas maneiras de jogar, desde que devidamente combinadas com antecedência. Jogos como Reverse, que ainda treina atenção, memória visuoespacial, ou o Bonanza, jogo de cartas com a necessidade de cooperação para ganhar o jogo e, Domínio, onde a formação de alianças é fundamental para avançar na construção de cidades, estradas. Enfim, há uma infinidade de jogos de regras, todos de muito proveito para o desenvolvimento da criança e, uma oportunidade para os adultos interagirem sadiamente com elas.

 

 

                               Figura 1: Domínio, jogo que requer formar alianças e cooperação.

 

   A infância se apresenta como um exercício da normatização do mundo, seja na linguagem, por meio dos códigos de comunicação, ou no entendimento do mundo físico e vivo, através dos princípios e padrões de organização desses. Algumas dificuldades, na aprendizagem da linguagem ou da matemática, derivam da falta de uma normatização e organização das experiências, desde o corpo até aspectos mais elaborados dos sistemas cognitivos no cérebro.

   Essa normatização e organização parte das relações do sujeito com o mundo, estabelecidas desde o útero; portanto, se o indivíduo se desenvolve em um mundo sem normatizações e regras, ou com regras e normas todas muito rígidas, sem relações causais ou senso de justiça, e mesmo ainda, com muitas regras e normas conflitantes que são oferecidas, é bem possível que aprenda de maneira equivocada o uso e lógica do mundo moral.

   Durante a infância, são imprescindíveis experiências que normatizem nosso comportamento; a ação coerente e de acordo com as regras e códigos sociais e legais é primaz para a configuração daquilo que a criança irá espelhar. Se existem normas que a criança já percebeu e o adulto age em desacordo com as mesmas, a criança pode automatizar e internalizar o blefe como sendo a norma.

   Isso porque somos dotados de um conjunto de neurônios, os “neurônios espelhos”, que apresentam como principal função espelhar o que se passa na mente de outras pessoas ou mesmo animais, uma Teoria da Mente, que é a construção de uma ideia dos sentimentos e emoções, intencionalidades, tentativas de engodo ou amizade e todas as nossas capacidades de empatia (Baron-Cohen, 2001). Durante a infância há um momento máximo de configuração destes neurônios espelhos, a partir do qual estabeleceremos nossos esquemas de ação e sistemas de crenças, que por sua vez, determinarão as avaliações e tomadas de decisões, ao longo de nossas vidas, base da Terapia do Esquema, desenvolvida por Young, Klosko e Weishaar (2008).

   Importante são os exercícios e treinos para a construção das normas (algumas normas e regras, mesmo leis, são superiores ao que pode ser combinado e compreender isso também é necessário exercitar). Algumas condutas podem ser mais flexíveis e plásticas, e devem ser discutidas, dialogadas, combinadas, mas sobretudo, devem ser cumpridas. Os acordos e combinados devem ser passíveis de execução, isso é particularmente relevante quando impomos alguma restrição ou punição. Muitos pais, mães e cuidadores dizem: – vai ficar o final de semana sem tablet, game ou celular, para logo em seguida cederem ao que foi colocado como punição ou restrição, fragilizando não só a norma estabelecida, como ainda, a autoridade daquele que não fez cumprir a mesma.

 

Figura 2: Bonanza, um dos jogos de cartas mais premiados de todos os tempos, exercício da cooperação, trocas, doações e regras.

  Uma dica é sempre colocar punições ou restrições que sejam possíveis de cumprir, aquelas que você sabe que vai poder concretizar e cobrar, sem ceder. Muitos pais e mães impõem punições aos filhos que acabam por punir a família inteira, por exemplo, deixar de realizar uma atividade de lazer ou passeio com a família como forma de punir um dos seus membros, esse é um exemplo de regra de difícil cumprimento e errônea do ponto de vista da organização familiar. Quanto menor a criança, mais curto o prazo para a restrição ou punição, pois pode ser difícil para ela fazer as relações de causalidade dos eventos.

   Também é útil pensar na punição como fazem os budistas: não se pune a pessoa, mas sim, o ato que ela cometeu. Assim, quando uma criança não cumpre com um compromisso ou combinado, por exemplo, jogar vídeo game além do tempo determinado, ficará sem o jogo na próxima oportunidade que houver para esta atividade. A punição está imediatamente relacionada com o acordo estabelecido e não cumprido, a criança vai assim compreendendo a importância de normatizar seu comportamento e de sistematizar suas ações e relações.

   Nas instituições e no treino para adolescentes deve haver uma impessoalidade do padrão de cumprimento das normas, estabelecendo em códigos formais o que são os direitos e deveres daquele lugar. Deve constar isso em agendas escolares, em cartilhas de formação e, inclusive em contratos e informativos. Tais regras, desde que respeitando o que preconizam as leis, estão acima dos interesses particulares e podem ser colocadas nesta perspectiva, sendo que não é mais a regra do chefe, ou do professor, professora, mas a regra da empresa, da escola, da instituição. Isso tira um peso emocional muito negativo que advém das nossas relações nas esferas institucionais, possibilitando um papel de liderança mais positivo e menos impositivo.

   Cabe ressaltar que não seria desejável, em uma sociedade livre e em um processo civilizatório eficaz e com justiça social, formar autômatos, indivíduos pré-condicionados a obedecer, mas como indica Bauman (2011), para que o indivíduo se torne criativo na sua conduta ética e moral, livre, deve-se formar cidadãos autônomos, com conduta moral internalizada para garantir sucesso e paz ao longo da vida, pessoas autorrealizadoras, como sugere Maslow (Heylighen, 1992).

   A moral de forma autônoma, a efetiva moral, relacionada à cooperação, se forma no exercício do mundo das normatizações, na sua coerência e sistematização, bem como, no dialogado, no combinado e no cumprimento das normas, o indivíduo vai internalizando e automatizando os comportamentos morais e os aspectos cognitivos imprescindíveis para um processo civilizatório de paz e justiça social.

Referências Bibliográficas:
Baron-Cohen, S. (2001). Theory of mind in normal development and autism. Prisme, 34, 174-183.
Bauman, Z. (2011). A vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Tradução: Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar.
Heylighen, F. (1992) A cognitive-systemic reconstruction of Maslow’s theory of self-actualization. Behavioral Science, 37, 39-57.
Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. Tradução: E. Lenardon. São Paulo, SP: Summus. (Original publicado em 1932).
Young, J.E.; Klosko, J.S.; Weishaar, M. E. (2008). Terapia do Esquema. Guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed.