As Neurociências têm proporcionado mudanças significativas na maneira como interpretamos o comportamento, tanto no que tange ao individual assim como no coletivo. Dentre as reavaliações e mudanças, pretendemos traçar um diálogo entre a Teoria da Pirâmide das Necessidades de Maslow, o conceito de alostasia e os estudos mais divulgados sobre a dinâmica das emoções, importantes tópicos na área de gestão de pessoas, e consequentemente, na formação de líderes nos níveis educacionais e corporativos.

A pirâmide das necessidades e toda a sua proposta holística não pode ser vista como algo estanque e mecanicista, no qual o todo é igual a soma das partes, sem fluidez entre os diferentes estratos, como se para alcançar o estrato superior fosse necessário estar pleno nos estratos mais elementares e básicos da mesma. A pirâmide é uma estrutura dinâmica e fluida, sistêmica, derivada, mas que vai além das psicologias humanísticas, naquilo que Maslow se refere como a emergência de uma quarta psicologia, uma psicologia mais transpessoal, cósmica, além das necessidades humanas, do indivíduo, da individuação.

Também importante para nossa discussão é a ideia de Alostasia, a tendência de os processos fisiológicos se manterem oscilantes próximos a um ótimo (ótimo este que é sempre idealizado). Este conceito foi batizado por Walter Cannon em 1929 como homeostasia, que seria uma tendência destes estados permanecerem em equilíbrio. No entanto, a vida como sugere o bioquímico Ilya Prigogine, é um estado afastado do equilíbrio, por este motivo atualmente utilizamos o termo Alostasia, que é esta tendência de os estados oscilarem próximos a um ótimo estabelecido. Como em uma eletrocardiografia, onde há uma onda que representa o fluxo de corrente ao longo dos feixes de músculos e fibras do coração, se essa linha se torna fixa no ponto central é devido à falência do miocárdio e consequente morte do indivíduo se não for socorrido a tempo.

No filme O Ponto de Mutação, baseado no prestigiado livro de Fritjof Kapra, existe um debate acerca de diferentes visões de mundo, e uma bela relação entre a ideia de Prigogine e a impossibilidade de equilíbrio no curso de nossas vidas, no diálogo o personagem diz “as pedras falam e eu me calo”. Esta interpretação remete a passagem do novo testamento, no Evangelho segundo Marcos, das tentações de Jesus no deserto: Jesus estava muito perturbado e atribulado, pensando nas suas tentações e na sua vulnerabilidade diante das exigências da vida e de perfeição para sua obra e chega a conclusão de que as pedras estão em equilíbrio, pois não são vivas, e Jesus, enquanto entidade viva não poderia estar em equilíbrio. Somos organismos afastados do equilíbrio, que tendemos aos caos do universo e lutamos para manutenção e perpetuação da nossa ordem, do nosso equilíbrio e assim desorganizamos ainda mais o Universo. Como em uma corda bamba, assim dança a vida.

No que se refere à pirâmide das necessidades também devemos pensar a mesma enquanto algo afastado do equilíbrio, havendo fluidez e alostasia entre as necessidades em seus diferentes níveis. Hoje sabemos que o pertencimento, a aceitação de si e dos outros no nível social pode estar preponderte ou conjuntamente com necessidades que seriam julgadas como mais elementares e precedentes, como beber, comer, dormir. Também, uma pessoa pode colocar à frente das suas necessidades básicas a autorrealização, é bem sabido de pessoas que dormem e comem significativamente menos para atingir objetivos relacionados ao seu ofício e realização profissional.

Um ponto de fluidez mais elementar é o fato de indivíduos responderem de forma semelhante a uma dor física e uma rejeição. Para testar isso Eisemberg (2015a) realizou um experimento onde pessoas eram submetidas a um jogo de computador, então representadas por um avatar jogando vôlei com outros dois avatares que não eram pessoas reais, mas sim programas delineados para em um dado momento deixar de lançar a bola para o avatar do sujeito experimental. Simultaneamente eram realizados imageamentos cerebrais e o striatum ventral, no giro do cíngulo anterior, relacionada a dor física, estava bastante ativo. Portanto, organismos humanos são sociais por excelência, e nossas necessidades de pertencimento estão em um mesmo nível de saciedade que as necessidades de segurança ou mais especificamente, ambas são percebidas em uma mesma modalidade cognitiva pela mente (Eisemberg, 2015b).

Por outro lado, evitar o sofrimento e a tristeza e ir em direção a alegria e o prazer costuma ser bem mais complexo do que apenas a busca pelo alimento ou conforto fisiológico. Como escreve Spinoza, no livro Ética, parte III, da Natureza dos afetos humanos, o amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa externa, a alegria é uma emoção, a ideia que tem como expressão a emoção poderia ser outra pessoa; em nossas vidas, podemos tranquilamente dispor de menos alimento se repartirmos o mesmo com um filho, podemos ficar menos saciados mas isso nos faz mais feliz e realizado do que ter uma disponibilidade maior de suprimentos naquele instante. São conhecidos exemplos ao redor do mundo de pais que abdicam de suas necessidades básicas para verem saciados seus filhotes, isso em humanos e muitos outros animais. Evitar o sofrimento a outrem que amamos, por este outro pertencer a nós, por este outro estar representado fortemente enquanto ideia dentro de nós, uma ideia que nos gera alegria e aumenta nossa motivação e, nas palavras do filósofo de Haia, aumenta nossa potencia de vida. Estamos falando de abdicar de recursos valiosos para a sobrevivência, como comer, beber, dormir, em prol das chances de manutenção e sobrevivência da estrutura de outro ser (Spinoza, 2008). Uma análise de muitos dos mecanismos cognitivos, neurais e comportamentais das emoções e sentimentos pode ser encontrada na obra “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos”, do Neurocientista António Damásio (2003).

Na base da pirâmide temos as necessidades fisiológicas, sem as quais não podemos sobreviver.  O segundo estrato é caracterizado por necessidade de segurança, segurança do corpo, segurança no trabalho, segurança para a família. O terceiro grau na hierarquia das necessidades é o amor e pertencimento, que são atributos sociais discutidos em primeira mão neste texto. No quarto degrau temos a estima, o respeito aos outros e dos outros, a confiança que sentimos em nós mesmos e no mundo. O próximo e ultimo grau é diferente de todos os demais, pois não é uma necessidade saciável, originária de apetites, para usar o termo spinozano, mas uma necessidade que emerge a partir e acima das demais, a autorrealização.

A autorrealização, segundo a teoria de Maslow, não pode ser objetivada se as demais necessidades básicas não forem supridas, ponto este já discutido e refutado como tese central da presente análise. Em decorrência da sua característica enquanto retroalimentação positiva, a autorrealização não apresenta um ponto fixo a ser alcançado, mas constitui um processo constantemente em desenvolvimento, significa que as potencialidades do eu/self necessitam ser constantemente atualizadas (por isso, o conceito “self-actualization”) (Heylighen, 1992). Heylighen (1992) ainda analisa a situação de uma pessoa que tem todas as necessidades mais elementares da pirâmide satisfeita, provavelmente esta seria a pessoa mais feliz do mundo, no entanto, não parece ser sempre assim. Em outras palavras, autorrealização é aquilo a que chamamos de dar sentido as nossas vidas, de tornarmo-nos plenos ao longo do caminho, de uma busca, e ao mesmo tempo, esta plenitude abre espaço para novos desejos e experiências.

Também aqui é possível traçar correlatos entre a teoria de Maslow, mais especificamente ao amplo preenchimento dos estratos básicos da pirâmide das necessidades e o conceito de alostasia, esta flutuação dos estados fisiológicos e psicológicos de oscilarem próximos a um ótimo. Parafraseando o dramaturgo, antipsicoterapeuta e anarquista Roberto Freire, em seu livro Coiote, a felicidade é como o vento, às vezes é brisa, noutras tempestade, e por vezes é dia mormacento sem nem um pinguinho de vento. Oscilamos entre levemente felizes e levemente tristes, a tristeza branda ou bile branca dos filósofos e alquimistas, também denominada melancolia, cuja história do pensamento é lindamente discutida por Moacyr Scliar em “Saturno nos Trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil”. Portanto, este oscilar entre uma tristeza moderada e uma felicidade moderada constitui o cerne do que motiva e impulsiona a autorrealização, é o processo que nos leva em busca de algo mais que a satisfação de necessidades essenciais, segurança, conforto, amor e relacionamentos.

Um ponto importante da teoria das pessoas autorrealizadoras é que Maslow realizou observações e estudou a vida de mais de uma centena de grandes personalidades e sua teoria vai muito além da pirâmide. A capacidade que o individuo tem de estar aberto a novas experiências constitui ponto inicial das características das pessoas autorrealizadores, no que Maslow denominava openness to experience. Geralmente estas pessoas apresentam uma visão mais apurada da realidade e relação mais satisfatória com a mesma.

Como apontado por Martin Seligmann, o mentor da Psicologia Positiva, em sua obra de divulgação “Felicidade Autêntica”, as pessoas com a visão mais apurada da realidade são aquelas cujas emoções oscilam entre levemente felizes e levemente tristes (Seligmann, 2003). Novamente a ideia de oscilar parece fundamental na análise do sucesso do empreendimento da autorrealização.

Do ponto de vista educacional, não caberia no presente texto análise mais profunda dos papéis que os estudos em psicologia positiva teriam para os processos educacionais, o que pode ser possível em outro momento. Um possível desdobramento para a aprendizagem decorre do entendimento do fluxo de imagens mentais durante eventos de tristeza branda e alegria branda. Segundo Damásio (2003), quando estamos vivenciando emoções negativas, há um diminuto fluxo de imagens mentais, somos mais monotemáticos em nossos pensamentos e nos detemos mais demoradamente nestas poucas imagens mentais, num processo que poderíamos denominar de pensamentos “ruminantes”. Por outro lado, quando experienciamos emoções positivas há um fluxo aumentado de imagens mentais e pouco conseguimos nos deter em uma imagem específica.

O fluxo cognitivo mais intenso seria adequado em momentos de aprendizagem que exigisse do aluno mais criatividade, quando ele precisa ter ideias, ou ser criativo na análise de caminhos a seguir, o que chamamos de tempestade de ideias, ou “brain storm”. O educador/educadora pode ter posturas mais alegres para motivar seus alunos na tomada de decisões sobre os argumentos necessários a um tema de redação. Também nas corporações, os líderes devem fazer uso de expedientes mais alegres e positivos emocionalmente quando necessitam de criatividade de seus colaboradores. Na contramão emocional, educadores e líderes corporativos devem conduzir seus alunos e colaboradores para emoções mais negativas, um ambiente mais melancólico quando se fizer necessário foco em poucos tópicos para o bom desenvolvimento de uma tarefa ou na realização de um exercício específico de matemática, no qual o aluno precisa ficar focado em um tópico e com reduzido fluxo de ideias e imagens mentais. Se durante a criação de argumentos para os temas da redação faz-se necessário aumentado fluxo de imagens mentais e, portanto, emoções mais positivas, durante a dissertação dos argumentos seria interessante valorizar emoções negativas como a melancolia para não perder o foco no tema e ficar centrado nos argumentos já criados anteriormente.

Muitos desdobramentos, tanto em ambientes educacionais quanto corporativos, são possíveis a partir da primeira análise aqui realizada. A psicologia positiva precisa ir adiante ao que concerne as emoções, reforçamento de traços de caráter, assim como, formação de lideranças positivas nas corporações. O entendimento da dinâmica das emoções também propicia melhores relações interpessoais e necessita novos estudos em suas aplicabilidades na educação e gestão de pessoas. Nossa análise é limitada e teve por objetivo motivar o interesse em diferentes interfaces da psicologia, neurociências, educação e formação de líderes, tendo em vista os grandes desafios que diferentes setores da sociedade têm pela frente no que tange ao uso das emoções enquanto reforçadores de aspectos positivos do caráter das pessoas e da confiança nas instituições.

 

Bibliografia:

Capra, F.(1985) O Tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1985.

Damásio, A. R. (2003) Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

Eisenberger, N.I. (2015a). Meta-analytic evidence for the role of the anterior cingulate cortex in social pain. Social Cognitive and Affective Neuroscience, 10, 1-2. Eisenberger(2015)SCAN.pdf

 

Eisenberger, N.I. (2015b). Social pain and the brain: Controversies, questions, and where to go from here. Annual Review of Psychology, 66, 601-629. Eisenberger(2015)ARP.pdf

 

Heylighen, F. (1992). A cognitive-systemic reconstruction of Maslow´s theory of self-actualization. Behavioral Science, Volume 37, 1992. Disponível em: https://pespmc1.vub.ac.be/Papers/Maslow.pdf. Acesso em: 02.jan.2016.

 

HSM experience. Gestão voltada para o cérebro. Disponível em: https://experience.hsm.com.br/posts/gestao-voltada-para-o-cerebro. Acesso em: 01.set.2015.

Inagaki, T.K., Muscatell, K.A., Moeini, M., Dutcher, J., Jevtic, I., Irwin, M.R., & Eisenberger, N.I. (2015). Yearning for connection? Loneliness is associated with increased ventral striatum activity to close others. Social, Cognitive, and Affective NeuroscienceInagaki(2015)SCAN.pdf

Meyer, M.L., Williams, K.D., & Eisenberger, N.I. (2015). Why social pain can live on: Different neural mechanisms are associated with reliving social and physical pain. PLoS OneMeyer(2015)PLOSOne.pdf

Prigogine, I. (2011). O Fim das Certezas: tempo, caos e as leis da natureza. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp.

Prigogine, I. (1977). Time, structure and fluctuations. Nobel Lecture.

Seligman, M. E. P. (2003). Felicidade Autêntica. Rio de Janeiro: Ponto de Leitura.

Scliar, Moacyr. (2003) Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo: Cia das Letras.

Spinoza, Benedictus de. (2008) Ética. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

 

O fim das culpas e a autorrealização (Em homenagem a Abraham Maslow)

 

Culpas que carrego comigo

Que escrevo, mas não reprimo.

Culpas de tempos em que eu ainda não era.

Culpas que a existência te exige a pagar

Antes mesmo de dever.

Pecados que não tens

E que a arte ajuda a apagar

Culpas que conquistastes por temer.

Espontaneidades que tens que permitir

Para que sejas especial nas aprendizagens que colheste.

Desapegar-se de ideias que não te pertencem,

De qualquer materialidade que te oprima.

Relações mais satisfatórias

Consigo e com o mundo há de ter.

A culpa que sai de ti

É aquela que não se dá ao outro.

O preço imposto pelo Grande Outro é irreal demais para se arcar.

Vantagens mesmo o mundo te trará

Nas experiências místicas; culminantes.

Um viver mais intenso, profundo; humano.

Sem medos, sem outros ais.

Retire de ti o mais que puder o ego

E nos problemas deverás te centrar.

Compreendas que o que és

São apenas superfícies de uma borda ilusória.

Perder-se nas realidades relacionais,

Levando consigo um projeto de individualidade.

Ser e estar enquanto verbos diferenciados.

Um recomeçar resiliente, melancólico também.

Um pouco de partícula ficará da onda,

Da obra em ouro do ser autorrealizador.